Combate ao assédio é desafio para humanizar as relações de trabalho no país

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| 15/05/2023

Mobilização da sociedade, amparo legal e medidas de acolhimento são parte da luta para acabar com a prática que afeta a saúde do trabalhador e contamina a organização institucional das empresas

O assédio moral no local de trabalho é um fenômeno antigo. Realidade de grande parte dos ambientes corporativos, é um assunto mais presente nos espaços acadêmicos, jurídicos e sindicais. Apesar de viver as situações de abusos de forma recorrente, o debate sobre este tema é quase inexistente nas camadas mais populares da classe trabalhadora. A falta de ferramentas de combate, canais de denúncias e conscientização sobre práticas de assédio contribuiu para a criação de uma realidade de subnotificação de casos no Brasil. Tratei do assunto assédio em nota técnica na 25ª Carta de Conjuntura da Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS), disponível em https://www.uscs.edu.br/noticias/cartasconjuscs.

Margarida Barreto, professora e pesquisadora, que foi pioneira nos estudos sobre assédio moral e sexual no Brasil, conceitua que a prática consiste na “exposição dos trabalhadores e trabalhadoras a situações humilhantes e constrangedoras, repetitivas e prolongadas durante a jornada de trabalho e no exercício de suas funções, sendo mais comuns em relações hierárquicas autoritárias e assimétricas, com o objetivo de forçar o empregado a desistir do emprego”. 

A pesquisadora classifica o assédio em dois fenômenos chamados de vertical e horizontal. De acordo com Margarida, “o fenômeno vertical se caracteriza por relações autoritárias, desumanas e aéticas, onde predomina os desmandos, a manipulação do medo, a competitividade, os programas de qualidade total associada à produtividade.” 

Já o fenômeno horizontal é relacionado à pressão para produzir com qualidade e baixo custo. Margarida defende que “o enraizamento e disseminação do medo no ambiente de trabalho reforçam atos individualistas, tolerância aos desmandos e práticas autoritárias no interior das empresas que sustentam a ‘cultura’ do contentamento geral”. Para ela, neste processo, os trabalhadores assediados escondem as humilhações e quem está “sadio” trabalha com medo de adoecer e incorpora o padrão discursivo da liderança contra quem adoeceu criando uma espiral de humilhação.

Uma outra realidade que assombra são os assédios de cunho sexual. De acordo com dados do Ministério Público do Trabalho (MPT), o volume de denúncias em locais de trabalho foi maior em 2022. O procurador-geral do Trabalho, José de Lima Ramos, afirmou que as queixas recebidas pelo órgão até junho, representavam 63% das notificações de todo o ano de 2021. Foram 300 denúncias até junho de 2022, contra 474 do ano anterior.

A realidade na Caixa      

Infelizmente, o ano de 2022 também foi marcante para a Caixa Econômica Federal devido às denúncias de assédio sexual e moral atribuídas ao então presidente do banco, Pedro Guimarães, que foram responsáveis por abrir um portal para a realidade das condições enfrentadas pelos empregados e empregadas. A Corregedoria do banco estatal desenvolveu um relatório final sobre o caso com cerca de 500 páginas, elaborado com base em 50 depoimentos de vítimas e testemunhas. A conclusão da corregedoria foi encaminhada para os órgãos competentes e aguarda decisão final.

O Ministério Público do Trabalho (MPT) também produziu um relatório da Ação Civil Pública que investigou, pela primeira vez na história, as denúncias do tipo contra um dirigente do alto escalão do banco. O documento apresentou dados internos alarmantes sobre as condições de trabalho a que os empregados e empregadas estavam submetidos. Desde que foi designado ao cargo por Jair Bolsonaro, em 2019, os casos de assédio e afastamentos médicos explodiram sob a gestão anterior. Os dados analisados mostram que a média de denúncias por assédio entre 2012 e 2018 era de 80 por ano. Já em 2019, até a saída do ex-presidente em 2022, a média anual era de 157 denúncias e depois que o caso se tornou público e notório, o número chegou a 561.

Os casos dentro da Caixa deixaram evidente a necessidade de avançarmos no desenvolvimento e aprimoramento de mecanismos de denúncia e combate a este tipo de violência. Mostraram também que é necessário aprimorar políticas de enfrentamento de todos os tipos de agressão contra a mulher, seja física, psicológica, econômica ou sexual, no ambiente doméstico, público ou no local de trabalho.

Assédio Organizacional

Os estudos sobre o tema desenvolvidos ao redor do mundo apontam que o assédio moral pode ser praticado de forma interpessoal, contra um indivíduo, mas também pode fazer parte do modelo de gestão da empresa. Neste caso é conhecido como “Assédio Moral Organizacional”. As características são gestão por estresse, gestão por injúria e gestão por medo, que são promovidas por gestores da empresa com objetivos administrativos. Esta realidade pode ser analisada a partir da dinâmica do capitalismo na fase neoliberal, que intensifica as disputas e competições entre as corporações. Neste cenário, somado às transformações no mundo do trabalho a partir da interferência do mercado nas legislações trabalhistas, promovendo perda de direitos, modelos de criação de programas de metas abusivas, intensificação de competição entre os trabalhadores, rankings e outras práticas, os assédios deste tipo passam a se intensificar nos ambientes de trabalho.

Durante o governo Bolsonaro, a Caixa apresentou indícios das práticas já que não foram apenas os índices de assédio que subiram, mas também o número de afastamentos previdenciários em consequência da piora nas condições de trabalho e das mudanças na cultura organizacional do banco. Por trás do discurso da meritocracia presente nos últimos anos, o ex-presidente implantou um modelo de gestão baseado no medo e na intimidação.

Alta rotatividade de empregados em cargos de função e direção, a submissão dos empregados a exercícios de flexão ou atividades vexatórias; a proibição do uso de roupas vermelhas, caracterizando o assédio político; gritos e ameaças. Esta realidade se tornou ainda mais factível nos dados do MPT que apontou que de 2013 a 2018 a média de afastamentos médicos era de 277 funcionários(as) por ano. A partir da gestão de Guimarães, até sua saída em junho de 2022, a média anual passou a ser de 354 funcionários(as) por ano, o que representa 27,79% de aumento. Após a demissão de Pedro Guimarães, o número chegou a 383 afastamentos, alcançando o índice de 44,96%.

Margarida Barreto aponta que este padrão abusivo nas relações trabalhistas causa danos à saúde física e mental, não somente daquele que é excluído, mas de todo o coletivo que testemunha esses atos.

Combate à violência em todas as esferas

Um marco na luta pelo fim da violência contra a mulher é a Lei Maria da Penha, que em 2022 completou 16 anos. Um dos melhores dispositivos do mundo de combate à violência contra a mulher foi desenvolvido pelo movimento de mulheres brasileiro. Escrito por juristas, o projeto foi enviado ao Congresso em 2002 e depois de muita mobilização popular, audiências públicas e diálogo com a sociedade, a proposta foi finalmente sancionada em 7 de agosto de 2006, pelo então Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva.

A Lei Maria da Penha é um marco no Brasil. Ela garante medidas protetivas, varas especiais e diversas ferramentas de atendimento à população feminina em situação de violência, é considerada pela ONU uma das três melhores iniciativas deste tipo no mundo. Porém, 16 anos após a sua aprovação, ela ainda não é completamente aplicada e sofre ameaças de alteração dia após dia.

No contexto da pandemia de covid-19, a violência não diminuiu. De acordo com dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, uma em cada quatro mulheres brasileiras (24,4%) acima de 16 anos afirma ter sofrido algum tipo de violência ou agressão nos últimos 12 meses. Isso significa que, ao menos, 17 milhões de mulheres sofreram violência física, psicológica ou sexual no último ano. Os dados apontam, ainda, que a residência segue como o espaço de maior risco para as mulheres e 48,8% das vítimas relataram que a violência mais grave sofrida no último ano ocorreu em casa. Está clara a necessidade de seguir aprimorando a Lei Maria da Penha e suas ferramentas.

A restrição de circulação proporcionada pela pandemia não reduziu a insegurança das mulheres nos locais públicos. Ainda segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a rua aparece como o segundo lugar com mais risco de violência, com 19,9% dos relatos, já o trabalho aparece como o terceiro local com mais incidência de violência, com 9,4%.

A pesquisa também traz à luz o cenário de violência sexual. Os dados mostram que 37,9% das brasileiras foram vítimas de algum tipo de assédio sexual nos últimos 12 meses, o que equivale a 26,5 milhões de mulheres. O ambiente de trabalho e transporte público são os espaços mais hostis e propícios ao assédio do que festas, por exemplo. Ao menos 8,9 milhões de mulheres, o que representa 12,8%, receberam comentários desrespeitosos no trabalho.

E o que este dado quer nos dizer? O local de trabalho, onde se garante a subsistência da mulher e de sua família, não pode ser um lugar de inseguranças.

Olhando para o futuro

Para transformar essa realidade é necessário avançar na criação de leis efetivas que punam os agressores, sejam em casos interpessoais ou generalizados nas corporações. Na gestão das empresas é preciso humanizar as relações de trabalho, criar processos efetivos que garantam a rentabilidade do negócio e promover espaços de escuta. Não há ninguém mais interessado no sucesso da empresa do que o seu empregado que busca estabilidade em sua carreira. Outras medidas são o aprimoramento de canais de denúncia e a criação de espaços seguros de acolhimento das vítimas. A participação da sociedade também é essencial e pode se dar por meio de canais de comunicação para a conscientização dos trabalhadores e trabalhadoras sobre o tema e, sobretudo, encorajá-los a denunciar e combater esta prática.

Fonte: Rede Brasil Atual