Número de benefícios por transtornos mentais aumenta 31,2% no DF

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| 22/01/2024

Os dados são do INSS. Em 2023, foram concedidos 8.095 benefícios, No ano anterior, foram 6.169. Para especialistas, mitigar a sobrecarga de trabalho, treinar gestores e estimular a cooperação podem ser algumas saídas

Subnotificado, o adoecimento mental devido a problemas decorrentes do trabalho impacta de forma significativa relações profissionais e pessoais. No mês da campanha Janeiro Branco, que busca conscientizar sobre os cuidados com a saúde mental e emocional, o tema chamou ainda mais atenção no Distrito Federal desde 14 de janeiro, quando um sargento da Polícia Militar (PMDF) matou um soldado e, em seguida, tirou a própria vida.

Em um contexto de estigmatização e de falta de apoio, trabalhadores de diferentes setores desenvolvem transtornos, por vezes, incapacitantes. Prova disso é que, em 2023, o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) concedeu 8.095 benefícios por incapacidade temporária a profissionais do DF diagnosticados com transtornos mentais e comportamentais, segundo o Ministério da Previdência Social. O órgão não divulgou as profissões com maior incidência de afastamentos por esse tipo de problema.

Desse montante, 352 são benefícios acidentários, isto é, aqueles que têm relação direta com o trabalho. No total, o número de concessões é 31,2% maior do que o contabilizado em 2022, 6.169. Entre os problemas mais recorrentes estão a depressão, a ansiedade e o transtorno de adaptação, definido como um estado de desequilíbrio causado por estresse identificável. Além disso, a síndrome de Burnout — distúrbio com sintomas de exaustão extrema, estresse e esgotamento físico resultante de situações de trabalho — também é recorrente e foi classificada como doença ocupacional pela Organização Mundial de Saúde (OMS), em 2022.

Para Wanderley Codo, professor, pesquisador e coordenador do Laboratório de Psicologia do Trabalho da Universidade de Brasília (UnB), qualquer profissão tem o potencial de adoecer o trabalhador. No entanto, o risco tende a ser maior naquelas em que há perda de controle sobre o próprio trabalho e muito envolvimento afetivo.

“Uma pessoa que trabalha com finanças, por exemplo, lida com muitas variáveis, como a instabilidade da bolsa de valores. Já os profissionais cujo trabalho se relaciona com o cuidado, como aqueles das áreas de educação e saúde, inevitavelmente desenvolvem vínculos que podem potencializar os transtornos emocionais”, explica.

Sob outra perspectiva, Fernanda Duarte, professora e doutora em psicologia social, do trabalho e das organizações, ressalta que fatores com maior tendência a adoecer trabalhadores estão mais vinculados aos estilos de gestão do que ao setor em que estão inseridos. “Estimar uma profissão que seja mais afetada a partir da estatística não nos dá uma medida justa, visto que geralmente os profissionais com maior acesso a serviços de saúde conseguem mais ‘reconhecimento’ e ‘legitimidade’ em seus relatos. Professores, profissionais de saúde, policiais e bombeiros, de fato, têm condições de trabalho complicadas e, muitas vezes, precárias, mas também têm maior acesso, o que torna mais provável o recebimento de um diagnóstico”, detalha.

Como exemplo, a professora cita aqueles que atuam com limpeza, geralmente terceirizados, que não têm o mesmo acesso que as profissões citadas anteriormente, e também adoecem. “Além disso, em função da divisão racial do trabalho, essas queixas costumam ser negligenciadas ou descredibilizadas”, completa.

Entre os transtornos mais recorrentes estão a depressão, a ansiedade e o transtorno de adaptação
(foto: Caio Gomez)


Desgaste emocional
Falta de materiais para atender os pacientes, equipamentos precários, sobrecarga de atividades e relações profissionais conturbadas desestimularam a enfermeira Juliana (nome fictício), 27 anos, a continuar na atividade. Os estresses constantes a obrigaram a procurar, por conta própria, um psiquiatra, que a diagnosticou com depressão e a afastou do trabalho por 30 dias.

“Cresci dizendo que seria enfermeira e segui esse caminho. No decorrer da faculdade, percebi que a profissão era muito diferente do que eu idealizava. Mas concluí a graduação e, em 2022, integrei a equipe de uma policlínica, onde atuava no curativo de alta complexidade e na infectologia”, conta. Quando adoeceu, recebeu da sua equipe apenas um conselho para descansar.

Com as frustrações, mudou de setor e passou a atuar na atenção primária, em uma Unidade Básica de Saúde (UBS). As dificuldades, no entanto, permaneceram. “Sempre costumo dizer que os profissionais da saúde têm pouca ou nenhuma saúde. As condições de trabalho e o contato diário com pessoas doentes adoecem. Então, pretendo sair dessa área”, desabafa. No momento, o objetivo de Juliana é prestar concurso público para a área jurídica.

Trabalhar com atendimento ao público, sujeitando-se, muitas vezes, ao tratamento hostil dos clientes, também não é tarefa fácil. Poliana Brito, 26, que o diga. Desde 2019, já passou pelos cargos de garçonete, caixa e atendente. A jovem relata que desenvolveu diferentes distúrbios psicológicos, como problemas de autoestima e oscilação de humor, em vista dessas interações. “Já ocorreu de as pessoas não aceitarem ser atendidas por mim devido a minha aparência”, lamenta a jovem que usa piercings, tatuagens e a cabeça raspada.

Foram vários os pedidos de demissão logo após passar pela etapa de experiência. “Chega um momento em que estou tão sobrecarregada que começo a não querer estar lá, a entregar atestados ou a simplesmente faltar”, confidencia. Para ela, são raros os lugares que se preocupam com a saúde mental do trabalhador nessa área.”Com o salário que a gente ganha, ou sobrevive ou faz terapia”, conclui Poliana, que não tem como arcar com a despesa de um tratamento.

Busca por novos ares
Hoje psicóloga, Stefania Ferreira, 47, mudou de profissão devido ao assédio moral que sofreu em uma escola. Durante 23 anos, ministrou aulas para o ensino médio, em uma rede de ensino particular, onde os principais desafios eram a falta de apoio da parte pedagógica e da direção do colégio, além das intervenções grosseiras de alguns pais.

“O aluno não estudava, não fazia as tarefas e ainda tirava nota baixa. A direção, por sua vez, queria que nós (professores) fizéssemos milagres. A educação é uma via de mão dupla. O professor explica e o aluno estuda”, enfatiza a ex-docente.

Em um cenário de 45 alunos por sala, Stefania relembra que as palavras ansiedade e Burnout, ou qualquer tipo de desgaste emocional, eram veladas nos colégios particulares. “Existiam palestras sobre o tema, mas eram mera ilustração, pois a abordagem desses problemas no dia a dia não era aceita”, recorda. O estopim que motivou a troca de profissão se deu após um episódio de assédio moral. “Quando a diretora gritou comigo na sala dela, decidi sair da educação para fazer psicologia e ajudar profissionais que, como ocorreu comigo, estavam adoecidos”, relata.

Tanto o pesquisador Wanderley Codo quanto a professora Fernanda Duarte concordam que o assunto saúde mental e trabalho ainda é estigmatizado, pouco estudado e carece de dados, condições que dificultam o reconhecimento do indivíduo acerca do seu estado emocional e, consequentemente, impactam a busca por ajuda.

Três perguntas para
Fernanda Duarte, professora e doutora em psicologia social, do trabalho e das organizações

Quais profissões estão mais propensas a ocasionar adoecimento mental?

Embora alguns teóricos digam que algumas profissões adoecem de forma específica, o que nós vemos, na realidade, é que a forma como o trabalho é estruturado mais amplamente (a nível social) e organizado (no local de trabalho, nas relações de trabalho) podem impactar negativamente trabalhadoras e trabalhadores e levá-los até o adoecimento físico e mental. Assim, eu diria que os fatores que têm maior tendência a adoecer trabalhadores, independentemente do setor em que estão inseridos, estão vinculados às formas de gestão do trabalho e aos estilos de gestão. Atividades onde a sobrecarga de trabalho se torna parte desse trabalho, estilos de gestão em que não há participação dos trabalhadores, comunicação não transparente/honesta, ameaças e humilhação como forma de gestão são alguns desses fatores.

Como esse adoecimento impacta em outros setores da vida desses trabalhadores?

O adoecimento mental impacta as relações do trabalhador/a consigo mesmo/a, com seus amigos e familiares, com seus cônjuges. Parte como efeito do adoecimento em si e parte pela estigmatização do adoecimento mental (que é contraditória e vem acompanhada do questionamento sobre a legitimidade da doença. Exemplo: “Ah, isso não é depressão, não, é preguiça, falta de força de vontade, falta de Deus”. Se o adoecimento acaba culminando em uma licença saúde, geralmente a estigmatização se agrava, e o isolamento social também complexifica a situação.

Quais ações as empresas e órgãos públicos podem promover para reverter essa situação?

Alguma medidas dizem respeito à reformulação de políticas de organização e gestão do trabalho. No âmbito da organização, examinar formas de mitigar sobrecarga de trabalho. Por exemplo, contratar mais gente; cortar tarefas que demandam muito tempo mas não adicionam muito à produtividade. Em termos de gestão, pode-se pensar tanto no micronível (treinamento de gestores para uma gestão que não se baseie na violência via ameaças e humilhação no local de trabalho) quanto no macronível (reavaliar políticas de avaliação e gestão do desempenho, reduzir a competitividade no local de trabalho, estimular a cooperação e a solidariedade).

Rede pública
A porta de entrada para buscar ajuda na rede pública são as 176 unidades básicas de saúde (UBS) disponíveis, onde são ofertados os atendimentos tradicionais a práticas integrativas, como meditação, tai chi chuan, ioga e terapia comunitária.

Ao Correio, a Secretaria de Saúde (SES-DF) informou que foram implementadas diversas ações para promover a saúde e a segurança no trabalho, incluindo exames periódicos, programas de gestão de riscos, juntas médicas. Há também o Programa de Saúde Vocal (PSV), que visa prevenir problemas vocais em profissionais da voz por meio de palestras, triagens vocais e exames.

Além disso, a Gerência de Saúde Mental oferece programas abrangentes, como orientação para aposentadoria, gestão de riscos psicossociais, educação em saúde mental, suporte psicológico, psiquiátrico, atenção ao dependente químico e apoio à saúde mental materna. O plano futuro inclui vídeos educativos, formações e parcerias para ampliar a prevenção e promoção à saúde.

Os endereços e horários de atendimento nas UBS podem ser consultados no site da SES-DF (saude.df.gov.br/unidades-basicas).

Correio Braziliense / *Estagiária sob a supervisão de Malcia Afonso